Viagem ao Passado Natural
Ilha de Saturno. Ilha do Sonho. Isolada ainda hoje do “mundo” mais civilizado, as Berlengas formaram-se à cerca de 280 milhões de anos e são um fragmento do continente americano. Com pequenas praias, de água cristalina, transparente. Com um forte construído em cima de uma rocha, grutas “mágicas” e natureza ainda pura, as mais de 22 mil gaivotas são quem domina a ilha. Nas Berlengas estamos dentro do Atlântico e parece que longe de Portugal e Europa. E o mar não termina. Tudo isto a 5,4 milhas (10 km) de Peniche. Fotografias e texto, João Tomé.
Água cristalina e transparente - com 4 e 5 metros de profundidade vê-se sempre o fundo -, praias pequenas, natureza pura, formas únicas nas rochas e grutas “mágicas” fazem parte da beleza natural da ilha Berlenga. Uma viagem curta, mas que dificilmente se esquece.
TEXTO João Tomé
10h45. «Vocês vão adorar a ilha, a água é linda!» A expectativa cresce à medida que Filipe - professor estagiário de geografia de 22 anos, das Caldas da Rainha - vai explicando a três amigas o “paraíso das Berlengas” enquanto o barco parte do porto de Peniche. Duas vezes bastaram para Filipe ficar encantado pela Ilha de Saturno – assim chamavam à Berlenga os historiadores da antiguidade. Repleta de muito mar, aves, granito róseo, vento e sonho, no arquipélago natural e selvagem das Berlengas respira-se liberdade e pisa-se granito americano.
A viagem ao conjunto de ilhéus – composto por uma ilha habitável, a Berlenga Grande, ilhéus mais pequenos, os Farilhões e os rochedos Estelas (que não se vêem do continente, por estarem tapadas pela Berlenga) – constitui uma pequena aventura. A principal embarcação para a ilha no Verão, Cabo Avelar Pessoa, balanceia de um lado para o outro, num vai e vem que lembra as diversões mais emocionantes de parques temáticos. “Oh my god, this is fantastic! Ah!” Ingleses, portugueses, italianos e franceses correspondem com gritos de emoção, à medida que o barco balanceia pelas ondas crispadas do Atlântico.
A euforia é clara nesta viagem de 30 a 40 minutos (depende da embarcação e estado do mar), mas existe também a preocupação com os enjoos. «É por causa do mar ser assim que de Outubro a Abril não há visitas à Berlenga, apenas alguns pescadores vão à ilha. Há meses em que é mesmo impossível ir lá!», explica um dos funcionários que vai distribuindo sacos de plástico – que acabaram por não ser necessários – para os estômagos mais sensíveis.
Do barco ao fundo visualiza-se os contornos da ilha principal, a Ilha de Saturno. Rochas isoladas que parece que se elevaram sobre o mar. Mas, na verdade, esta formação granítica de tom rosa não é mais do que um resto que permaneceu das Américas quando os continentes estavam ainda em formação. Bem diferente do solo português litoral e bem diferente dos arquipélagos da Madeira ou Açores, formados por erupções vulcânicas. E a América ali tão perto. Estamos perante um símbolo único de outros tempos, e com grande riqueza natural que constitui a Reserva Natural das Berlengas (RNB).
À entrada na zona de principal da ilha, que fica mais ou menos a meio, vislumbra-se a mistura da beleza natural com os poucos e simples vestígios humanos presentes. Com um pequeno cais de desembarque, que já serviu romanos, vikings, mouros e piratas ingleses, esta zona faz esquecer que estamos na Europa ou Portugal. Ao fundo vê-se a principal praia da ilha, Carreiro do Mosteiro, com cerca de 100 metros, dependendo da maré. Grutas e encostas de tom rosa e uma água cristalina e transparente pouco comum no continente português soltam vários sorrisos daqueles que visitam pela primeira vez a ilha. Alguns exclamam: «Parece um paraíso!»
Também se vislumbra bem perto desta área de entradas e saídas, o farol, que está no topo da ilha, edificado em 1851 e baptizado de Duque de Bragança, cuja luz é visível a 30 milhas. Um pequeno bairro com poucas casas de pescadores, um restaurante e cinco tendas em socalcos naturais numa encosta preenchem a parte mais humana da ilha. No céu e nas encostas, milhares de gaivotas voam e chilreiam fazendo sentir, à medida que um sol abrasador queima os mais desprotegidos.
Beleza e natureza vs. turismo comercial
Na ilha existe muita beleza, mas não comodismo, ou turismo de ilha paradisíaca. A Berlenga é agreste, selvagem, pouco confortável e quem domina a ilha são as gaivotas. Um pequeno paraíso diferente dos paraísos comerciais que nos priva de confortos, mas coloca em contacto com a natureza mais pura e com histórias desde a sua criação peculiares.
Apenas 350 pessoas podem estar em simultâneo na ilha. A Berlenga é gerida pelo Instituto de Conservação da Natureza (ICN), que tutela a Reserva Natural das Berlengas (RNB) e cuida da vida natural desta ilha, que faz parte do concelho de Peniche e é considerada Reserva Biogenética pelo Conselho da Europa. A RNB é constituída pela Berlenga Grande e pelas águas envolventes até à profundidade de 30 metros.
Esta Reserva foi criada em 1983, com objectivos de preservação da fauna e flora, e para defender esta atmosfera insular, sem esquecer a riqueza das águas e o potencial turístico. A zona total da Reserva é de 1063 hectares e na parte central está a ilha da Berlenga com 78 hectares. O resto é o mar e os seus elementos.
O ICN tem ajudado a preservar o ecossistema insular da Berlenga, composto por uma centena de espécies botânicas diferentes - plantas como a Armeria e Pulicaria não existem em mais nenhum local do planeta -, por pequenos répteis, mamíferos e exemplares valiosos da avifauna marinha. Mas é no mar que está a maior riqueza do arquipélago. De acordo com o ICN, as suas águas biologicamente ricas não se encontram igual na costa portuguesa. Existe ainda um valioso património arqueológico subaquático – que se pode visitar em viagens de mergulho.
Mas há ainda muito a melhorar. O excesso de gaivotas tem de voltar a ser controlado e numa das praias inacessíveis a pé existe algum lixo. Também a presença de algumas plantas, chamadas infestantes, criam problemas para a natureza e rocha. Apesar disto a beleza natural prevalece.
Quem queira passar uns dias neste luxo natural tem algumas possibilidades, mas à que ir preparado para a aventura. Existem alguns socalcos numa encosta, recentes, que permitem acampar, mas não se está imune às necessidades das gaivotas que “pintam” as tendas de manchas brancas e o restaurante Mar e Sol tem 12 quartos.
No Forte de São João Baptista, uma das preciosidades da Berlenga também existem quartos, alguns deles na própria muralha com uma vista inesquecível. A gestão está a cargo da Associação Amigos da Berlenga e aqui a beleza não está associada ao conforto. Cada casa de banho serve quatro quartos e a água dos duches vem do mar. Não há electricidade nos quartos, aliás em toda a ilha a partir do fim do dia não há electricidade. Mas as limitações permitem um maior contacto com a natureza. Adormecer e acordar neste pedaço de terra pode ser uma experiência única – chegou a ser um retiro para Salazar, nos anos 50.
Passeio pela ilha, o excesso de gaivotas
Aventura e natureza é também o passeio pelos trilhos previstos para as pessoas ao longo da ilha da Berlenga. Apesar de não haver livre acesso a toda a ilha, devido a ser uma Reserva Natural, estes trilhos, de cerca de 2 quilómetros, são definidos por pedras pouco visíveis e placas.
O passeio permite uma sensação de isolamento, pela pouca presença humana. Bem longe do mundo civilizado, olhando para o continente vê-se o Cabo Carvoeiro (por vezes nem se vê) e do outro lado, apenas… mar, céu e sol (no final do dia). Uma sensação de despojamento e liberdade que só um oceano ou deserto podem dar.
Passear pela Reserva Natural das Berlengas tem também uma grande riqueza biológica. Ainda em Junho, várias crianças, trazidas pelo navio Creoula (iniciativa do Pavilhão do Conhecimento) visitaram a ilha. Estes passeios permitem ver não só que há excesso de gaivotas, mas também espécies como airos – as aves símbolos da ilha, muito semelhantes a pinguins e que estão a diminuir pelo excesso de gaivotas –, pardelas e galhetas, lagartixas e sardões, coelhos e ratos. E também algumas plantas raras.
Aliás, o aumento da população de gaivotas – mais de 22 mil –, de acordo com o director da RNB, António Teixeira, em declarações ao Público, deve-se ao facto da ilha ter sido «uma vitima do aumento dramático ocorrido em toda a Europa ocidental. Até em Madrid há gaivotas». A abundância de lixos nas zonas costeiras e de desperdícios lançados ao mar foi o que trouxe à Berlenga as gaivotas em excesso, e também terá de ser a mão humana a destruir-lhe os ovos.
A parte mais a sul da ilha, é a que dá para se visitar melhor. Pode-se descer a enorme escadaria e entrar no forte, que é uma pequena península, ou ver o farol de perto, no topo da ilha. Dessa zona, ao olhar para o horizonte longínquo do oceano Atlântico, tem-se uma vista magnífica para as Estelas - que são pequenas rochas perto da ilha da Berlenga, que não é possível ver do continente. Do outro lado do oceano fica o continente americano, ao qual já pertenceram as Berlengas.
Para além da beleza natural há que tomar cuidados. É preciso saber respeitar a vida natural, nomeadamente as gaivotas, para não sermos surpreendidos com voos rasantes, o que facilmente acontece quando têm crias. Não sair dos trilhos. Também ter cuidado com o sol porque, apesar de não se tratar de uma ilha tropical, as probabilidades de se apanhar queimaduras na pele são bastante superiores a qualquer outra praia do país.
A parte norte da ilha, permite olhar mais de perto para os ilhéus Farilhões, que têm dimensões consideráveis. É mais complicado caminhar nesta zona, são encostas mais íngremes e a presença das gaivotas nem sempre permite continuar pelos trilhos. Mas a riqueza natural é inquestionável. Facilmente se dá um passeio por esta área sem se ver uma única pessoa, gaivotas, essas estão por toda a parte. Aventura, natureza selvagem, liberdade, oceano, sol e grutas quanto baste.
O fantástico mundo das grutas
«Esta é a Gruta Azul, onde a água fica com uma tonalidade azul muito clara e brilhante com o por do sol.» De cabelo grisalho e pele queimada pelo sol o senhor Marcelino guia a sua pequena lancha pelas formas irregulares das rochas da ilha, que estão repletas de “estórias” que vão sendo contadas à medida que se passa pelas grutas e locais “mágicos”. Neste caso, depois de conduzir a lancha para dentro da Gruta Azul (por baixo do forte), o senhor Marcelino explica que a muita abundância de plancton permite à água ficar com uma luminosidade azul pouco habitual.
A viagem à volta da ilha é imprescindível para quem quer desfrutar das riquezas naturais das Berlengas, mas esta é também uma viagem incompleta, devido às fortes correntes que vêem de norte e que fazem com que o percurso das lanchas da ilha fique limitado à parte sul.
Começa-se por atravessar o chamado “carreirinho” da senhora D. Inês, «uma senhora que visitava a ilha», diz Marcelino. A excursão continua, com a Pedrinha dos Corvos, outra gruta e a passagem pela praiazinha do Forte S. João Baptista, onde a água tem um tom mais verde. Mesmo ao lado do forte uma rocha muito estranha tem a forma de uma enorme baleia.
Tudo isto, enquanto as gaivotas se passeiam no céu e os tripulantes tocam na água cristalina, à medida que o barco vai navegando. Olhar para a Berlenga transmite beleza e segurança, mas olhar para o horizonte marítimo faz perceber que estamos longe de tudo.
A viagem continua, o senhor Marcelino chama a atenção para uma cavidade na rocha com a forma de uma coração invertido e mesmo numa das extremidades sul da ilha pode observar-se uma rocha a que deram o nome de Cabeça de Elefante (ou Ponta dos Fundões), pelo seu aspecto característico. Ao entrar em mais um dos “recortes” rochosos da ilha, vislumbramos uma das áreas mais impressionantes, onde existe a chamada Cova do Sonho. Uma abóbada magnânime de granito, digna de uma grande igreja antiga, com 75 metros de altura, “esculpida” pela força das marés de outrora.
Por baixo existe uma pequena praia «onde já se realizou um casamento, mas que neste momento não é segura porque caem pedras», explica o senhor Marcelino. Na mesma zona existem várias grutas profundas, uma delas “pintada” pelas marés de branco – onde antigamente os pescadores pernoitavam, para se proteger e hoje habitam corvos marinhos, que mergulham na água como pinguins – e o Furado Seco, «que é uma gruta que atravessa a rocha de um lado ao outro e que se passa de gatinhas». Depois de visto 1/4 da ilha, volta-se para trás entrando numa gruta (funciona como túnel) que atravessa parte da ilha e nos coloca perto do forte novamente.
«Parece que estamos a descobrir estas grutas que ninguém tinha ainda descoberto», diz um jovem na lancha, pelo aspecto intocado, puro e natural desta parte da ilha. A verdade é que cada extremidade, cada gruta e cada “recorte” de rocha é conhecida e tem nome. «Não faço ideia quem colocou os nomes, mas sei que foi ao longo dos séculos», diz o senhor Marcelino.
Há muitos séculos atrás as mesmas rochas já tiveram outros nomes, para outros povos, outras culturas, como é o caso da própria ilha da Berlenga que já se chamou Ilha de Saturno. Esta é uma ilha americana - do mesmo granito róseo do litoral atlântico americano -, uma ilha de sonho, ao largo de Peniche. A viagem às Berlengas pode ser curta, ao contrário das viagens às ilhas tropicais, mas dificilmente se esquece.
A História Vestígios da história do homem, numa ilha pouco humana
As Berlengas também já foram um lugar sagrado. No primeiro milénio antes de Cristo celebrava-se o culto de Baal-Mekart, na ilha de Saturno, como os historiadores da antiguidade lhe chamavam. Mas outras pequenas histórias conta a Berlenga. Pensa-se que fenícios e lusitanos conheciam o arquipélago e o utilizavam como porto de abrigo. Já dos romanos, restam cepos de âncoras perdidas nos fundos do mar (século I ao século V), dos vikings as histórias dos seus ataques a embarcações comerciais. Piratas ingleses também estiveram na ilha, assim como os mouros (corsários argelinos), e novamente os ingleses. Mais tarde, já com os portugueses, nos Descobrimentos, foi no mar das Berlengas que capturaram a nau de Garcia Dias, vinda da Índia.
Do século XVI restam as ruínas do Mosteiro da Misericórdia, no cima das quais foi construído o actual restaurante Sol e Mar (1953), e do século XVII a Fortaleza (ou Forte) de São João Baptista, mandado construir em 1651. O Mosteiro foi mandado construir por D. Leonor, esposa de D. Manuel I, para albergar a ordem de S. Gerónimo. Os monges mantiveram-se no Mosteiro apenas cerca de três décadas devido às constantes incursões de corsários argelinos, que os enviavam para mercados de escravos no Norte de África, a doenças ou falta de alimentos.
Alguns anos mais tarde (1651) foi mandado erguer o Forte de São João Baptista por D. João IV de Portugal, onde se travaram batalhas com corsários e com castelhanos, a mais célebre foi em 1666, quando o castelhano Diogo Ibarra tentou ocupou a ilha depois de atacar o forte durante dois dias. A guarnição portuguesa que conseguiu resistir quanto possível era comandada pelo Cabo Avelar Pessoa e daí, a principal embarcação para a ilha ter o mesmo nome em homenagem ao Cabo.
Foi D. Afonso VI que restaurou a fortaleza, mas voltou a ser danificada e chegou a estar totalmente abandonada durante muitos anos. Nos anos 50 do século passado tornou-se numa pousada, que acolheu várias vezes Salazar e depois do 25 de Abril de 1974 foi ocupada. Um protocolo entre o Ministério da Defesa e a Câmara de Peniche atribuiu a gestão do forte secular à entretanto criada Associação dos Amigos da Berlenga.
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Informações e viagens
Período normal para visitar a ilha – de Junho a Setembro, algumas pequenas embarcações vão a partir de Abril (noutras alturas torna-se perigoso)
Pessoas permitidas por dia – 350
Preços da viagem de Peniche – ida e volta 17 €; para quem fique um dia ou mais 10/11 € de ida e o mesmo na volta.
Viagem às grutas na ilha – pequenas lanchas que estão na ilha 2,50 €
Empresas que fazem percurso – para marcações prévias: Viamar 262785646; Berlenga Turpesca 262789960, entre outras.
Alojamento – Forte São João Baptista (20 quartos) 8,50 a 9 € (262785263); Campismo 7 € (262789571); Restaurante Mar e Sol (12 quartos) 77 € (262750331).
Pontos de interesse – os vários quilómetros de trilhos, visita às grutas, Forte, fazer mergulho ou visitar também os Farilhões e Estelas com duração de 7 horas (através de uma das empresas que disponibiliza esses serviços).
Telemóvel - há rede, mas em certos locais com dificuldade – não há receptores na ilha, mas ainda se apanha cobertura do continente.
Restrições – proibido caça submarina e motos de água, importante andar nos trilhos e respeitar a natureza, não deixar lixo, não há multibanco na ilha, apenas há dois estabelecimentos comerciais um restaurante e um café/mercado de reduzidas dimensões.
Informações e marcações para campismo – Posto de Turismo de Peniche (262789571/262785934)