sábado, julho 14, 2012

alive is optimus

olho para o meu corpo com cada vez maior admiração. não são os músculos que estão mais tonificados ou a beleza que cresce a cada dia que passa - bem pelo contrário, cresce a gordura (vidas sedentárias) e a juventude vai fugindo. é o meu corpo que me permite Ser. já funcionou melhor, é certo, mas permite respirar e agir, reagir, comunicar e experienciar.
quando era miúdo, agora já posso dizer, há umas décadas atrás, achava que aquele (sim, porque entretanto cresceu e mudou em certa medida) era o MEU corpo. havia um misto de sentimento de posse, por um lado, sentimento de descoberta, por outro. as primeiras feridas eram o fim do mundo. chegava a perguntar à minha mãe se ia morrer com aquele arranhão no joelho - na altura parecia-me uma pergunta perfeitamente lógica, ora, se estava a sair sangue, quem me garantia que essa perda não seria irreparável.
nada como o passar do tempo e a experiência repetida para deixar esses receios para trás e passarmos a ser arrogantes com o nosso corpo e a tomá-lo por adquirido.
nessa altura, quando era miúdo, quando fui para a Primária e conheci a minha primeira professora, a Dona Esperança - cujo corpo já deixou de ter vida, há uns anos (fui ao funeral dela) -, tinha a certeza que o corpo me pertencia e portanto podia fazer com ele o que bem me apetecesse. ia testando os limites, os saltos, a força, era um corpo em crescimento, pronto para ser testado e magoado sempre que os testes iam longe demais - a minha testa e joelhos que o digam.
hoje vejo o corpo de forma diferente. sim, podemos fazer com ele o que nos dá na gana, tatuagens, marcá-lo para a vida, cicatrizes de aventuras, acidentes e tristezas, cirurgia plástica. tudo é permitido, nada nos diz que ele não nos pertence. MAS o corpo que usamos não nos pertence. é um veículo que usamos para ter vida, para respirarmos, funcionarmos, comunicarmos, agirmos e reagirmos, mas não é nosso. não é nosso porque a partir do momento em que deixa de funcionar bem, começa a ter problemas e entramos em modo GAME OVER deixamos de o possuir. deixamos de ter vida.
tudo está concentrado no cérebro, sem cérebro, o coração pode continuar a bater mas a vida consciente já não mora ali - chamam-lhe a morte cerebral, mas é morte. o que é a morte? a piada é que é o contrário de estar vivo. mas é. não é piada. e é coisa tão divertida quanto séria. tão assustadora quanto inevitável - segundo sabemos - e insignificante. algo que acontece a todos só pode ser insignificante. no entanto é assustadoramente real e irreparável. não há volta atrás. não há segundas oportunidades, quando ficamos sem vida, ou voltamos dentro de uns instantes breves, ou vamos manter-nos assim para sempre. e o sempre - esse estado permanente - tem muita força, tanta quanto "o que tem de ser tem muita força".
o corpo é descartável. como a máquina fotográfica que se usava há uns anos atrás. é usar e deitar fora - curiosamente nunca é o morto que se vê livre do seu próprio corpo. e convém mesmo deitar fora porque os corpos "infestam o bar". sem vida? pode-se usar partes para ajudar outros, mas a vida que havia ali foi-se. acabou. o definitivo é muito forte e, neste caso, cria uma aura de mistério para nós, seres humanos.
tenho de utilizar este meu corpo para fazer umas coisas, porque depois deixo de existir. posso ir amealhando coisas, muitas coisas, bens, carros, casas, riquezas, relógios, roupas, opiniões, preferências, crónicas, textos, livros, ideias, segredos, tristezas, alegrias. mas quando deixo de existir deixo tudo para trás, para outros, os vivos. e o que não deixo à mostra, o que pensei fazer mas nunca fiz, perde-se para a eternidade - o tal sempre, definitivo.
daí que o corpo é, de facto (com 'c'), um veículo, uma máquina orgânica que usamos, como usamos o carro para ir do ponto A (Algueirão) ao ponto B (Benfica, a localidade) ou a máquina fotográfica para tirar as fotografias que é possível tirar e depois deitamos fora. o que faz o corpo ser um veículo é esta coisa que se pode chamar CONSCIÊNCIA, ou inteligência, ou raciocínio, ou capacidade de comunicação e/ou compreensão. há quem lhe chama alma e acredite com todo o seu ser que existe um HADES (um mundo metafísico) para além do corpo (a funcionar), para além da vida. há quem acredite que nesse hades há o hades bom (céu/paraíso) e o hades para os maus (inferno). acreditar é uma daquelas coisas que fazemos quando estamos vivos. e como pessoa viva sou daqueles que espera para ver. acredito. acredito que não sei se acredito ou se não acredito num HADES.
é um tema tão antigo quanto a humanidade. essa humanidade que percebeu: "porra, quando o gajo morre não vive mais depois disso, pelo menos neste corpo que achamos que é nosso". desde essa primeira constatação que se criaram crenças no sobrenatural, no divino, no 'não presente' perante os nossos sentidos. há relatos suficientes para haver quem acredite em todo o tipo de possibilidades. que se saiba, cientificamente, não há relatos/elementos/provas suficientes para provar para lá da mínima dúvida a existência desse HADES. estamos certos que existimos porque os nossos sentidos, os que o nosso belo corpo providencia, nos mostram que existimos.
através do tacto (com 'c'), visão, olfacto (com 'c'), cheiro... experienciamos o planeta Terra e muito do que vem nele (incluindo o elementos, os vegetais e animais - como os humanos) e ainda o Sol, Lua e estrelas longínquas que o iluminam e influenciam (o planeta e a nós, por acréscimo). 
há dias em que ficamos na dúvida se não será tudo um sonho, como um filme de David Fincher ou David Lynch, mas vamos confiando nos sentidos do 'velho' e durante alguns anos honesto corpo.

os robots nunca ficam fragilizados com o seu fim, pelo menos nos filmes. vão desligar a ficha? acabou? faz tudo parte do processo. pode-se procurar ficar mais tempo em actividade, mas se não houver outra hipótese, resta acolher a inevitabilidade tal como ela é, inevitável.
posto isto, resta-me terminar com uma confissão muito humana. a morte IRRITA-ME. irrita-me porque não a compreendo. entendo que tudo tem um fim. entendo que o corpo não dura para sempre - até porque até ao momento (peço desculpa pelos dois 'até') a ciência/medicina ainda não encontrou forma credível de transportar um cérebro em funcionamento para um outro corpo (mecânico) que dure muito mais do que os 70-115 anos limite para todos os humanos (o limite, que se saiba, foi atingido por Jeanne-Louise Calment que cumpriu 122 anos de vida e perdeu-a, a vida, em 1997).
o que me irrita na morte é saber que a minha consciência e experiência - em conjunto - vai, de facto, deixar de existir, pelo menos considerando que o cérebro não tem nada de metafísico e não irá 'subir' ao HADES. lembro-me quando o meu bisavô Abílio morreu, de ter esperado por um sinal dele. um vislumbre de que havia existência além da morte. pedi-lhe. quis acreditar. e tive respostas - barulhos e coisas que caíram. infelizmente (ou felizmente, não sei) nada que me fizesse acreditar que eram sinais dele. o peculiar é que há muitos mais mortos do que vivos. ou se calhar não. só há vivos. porque quando se morre, pelo menos o corpo passa a ser "ashes to ashes, dust to dust" - parte do vasto espólio do que não vive. boa noite e, mantenham-se vivos.