FETICHE coisas que seduzem, fascinam
[in suplemento Y, Público - 16 de Janeiro, 2004; versão integral]
João Tomé
Um desejo de deserto, do nada, de viagem ao vazio de nós mesmos, que nos permite estar a sós com o Absoluto. Assim sente e deseja o deserto – a imensidão de céu e areia – Miguel Sousa Tavares. O deserto tem um céu diferente. Um céu que nos põe em contacto com a origem da Criação. Por lá, um copo de vinho pode dar uma alegria imensa.
Depois de alguma hesitação, escolhe de forma decidida, com o seu tom de voz grave, cavo e confiante: “O meu fetiche é o deserto!”. Como alguém que necessita de esperar para se pôr em contacto com as suas memórias, os seus desejos, Miguel Sousa Tavares comenta inicialmente que “só quem lá vai é que percebe o fascínio”. Depois vai recordando o que lhe transmitiram aqueles momentos de solidão.
“O deserto dá-me uma noção de espaço, de horizonte sem fim, de viagem interminável que eu gosto muito.” Para ele, isto significa que o deserto acaba por ser revelador do melhor e do pior de cada pessoa. Recorda-se de inúmeras situações onde viu isso acontecer, mas apenas comenta que “já conheci grandes aventureiros que se ´borravam` de medo lá, e pessoas aparentemente frágeis que se revelaram verdadeiros viajantes do deserto”.
Este é um sítio onde o escritor, cronista e jornalista coloca as suas ideias em ordem, sobretudo as ideias sobre o sentido ético da vida, o sentido final da vida. “É ali que começa a vida, o princípio de todas as coisas. Só então ficamos a saber que tudo o resto são circunstâncias.”
Cada vez mais “solto” e animado com as suas reminiscências, Miguel lembra-se de uma situação típica no deserto que exemplifica o despojamento que lá se experiencia. “Fui para o deserto uma vez e tinha comprado um carro novo em Lisboa, que é sempre um acontecimento, não é... Ao fim de uma semana lá, dei comigo a pensar que carro é que tinha comprado, sem me conseguir lembrar”, conta entre risos.
A primeira vez que se encontrou no seu sítio preferido, quase divino – confessa este ateu convicto –, foi há cerca de 15 anos. “Fui fazer uma reportagem sobre a guerra entre Marrocos e a Frente Polisário no Sahara”, confidencia. Essa altura foi a mais “violenta” de todas. A viagem decorreu em Agosto e chegou a apanhar 65 graus à sombra. “Não estava preparado para aquilo e por isso estive ali uns dias à beira de desidratar, mesmo. Nunca na vida supus que pudesse haver calor assim.”
Das outras vezes foi sempre mais organizado, aprendendo o que era preciso. E o que é preciso? Acima de tudo espírito de descoberta, uma infinita paciência e uma capacidade de introspecção e de relacionamento com os outros especial, explica. “Qualquer pequeno conflito ali pode assumir proporções imensas, numa situação de tensão controlada.”
As quinze vezes que já visitou o Sahara – a última foi há já três anos –, demonstram a sua preferência por este deserto africano. A sua estadia mais longa foi logo na segunda ou terceira viagem em que esteve um mês e meio na zona do Sahara na Argélia, “sempre em movimento, sempre em viagem”.
O deserto acaba por ser uma fonte de inspiração para uma pessoa que adora escrever, mas, sobretudo é uma fonte de conhecimento de si próprio e uma oportunidade para pensar nas coisas que são verdadeiramente importantes na vida.
O local intocado, primitivo, inicial e, ao mesmo tempo, definitivo, que Miguel Sousa Tavares tanto aprecia, também faz dele uma pessoa melhor? “Quando lá estou, sem dúvida!” É um bocado como os retiros para os católicos, compara o jornalista cada vez mais animado. “Eles vão aos retiros e ficam óptimas pessoas e depois vêm cá para fora e esquecem-se.” Miguel queria ter todos os dias o espírito de viajante do deserto mas, de facto, não tem: “tomara eu ter sempre essa mentalidade”.
Uma noite no deserto é: “Completamente inesquecível!”, diz entusiasmado. Começa pelo céu que é “completamente diferente”. Começa pela sensação de solidão em que se está. E depois, sobretudo, uma das coisas que mais gosta é que qualquer pequenina coisa dá uma imensa alegria. “Um copo de vinho, comer uma boa lata de atum, tem um valor que a gente nunca imaginou que pudesse ter.”
No deserto com quem? É muito difícil para ele encontrar alguém que entenda as coisas da mesma forma, que saiba respeitar os silêncios e a solidão e por isso, viajar é estar consigo próprio. Conhecer-se ainda mais, ao descobrir outros lugares, pessoas, gostos, cheiros. “Quando se viaja com outra pessoa, não se está tão atento ao que acontece à nossa volta, porque estamos preocupados com o outro”, por isso a solidão é fundamental, excepto, quando se está com a pessoa que se ama e com quem se gosta de partilhar tudo, ou com amigos especiais.
Uma viagem que é, para ele, simultaneamente uma viagem exterior, como as outras coisas, mas também uma viagem interior, como em lado nenhum. O deserto visto pelos olhos e experienciado nos sentidos de Miguel Sousa Tavares tem um encanto epopeico.
“Eu vou a Veneza e fico extasiado, sentado na praça de São Marcos, a olhar para tudo o que me rodeia. No deserto eu olho para as coisas que me rodeiam e para aquilo que está dentro de mim”, relata o autor do romance “Equador”.
Talvez por isso o conselho final de Miguel Sousa Tavares se torne óbvio: “Ninguém deveria morrer sem ter visto pelo menos uma vez o deserto”.