Morreu hoje a minha última bisavó. Chamava-se Augusta e nunca a esquecerei. Nos últimos anos foi internada num lar de 3ª idade e estava acamada há algum tempo. Dói-me saber que já não existe. Dói-me ainda mais saber que não a visitei quando devia. Facilitismo. Distância do lar. O facto de viver em Lisboa. Tudo desculpas que não pegam e que me custam. A verdade é que me sinto mal por isso. Foi culpa minha. Facilitismo de alma. Longe da vista, longe do coração. Ela já não estava muito bem, acamada, sem grande discernimento, e talvez tenha evitado vê-la assim, porque me custava. Sinto-me mal por ter optado pelo facilitismo e estou arrependido. Curioso como só nos arrependemos quando as pessoas morrem ou quando acontece alguma coisa grave. Na verdade, arrependi-me várias vezes de não ter ido visitá-la nestes últimos anos. Pensei sempre, hei-de ir. Tenho de ir. Nunca fui. Agora não há hipótese. Tenho hipótese de ir ao funeral dela. E isso não vou desperdiçar. Mesmo que custe, que custa. Vou!
Vou para honrar a memória de uma velhota simpática, alegre, bem disposta, que ficou viúva muito cedo. Vou, porque vou. Porque tenho de ir, não para os outros, mas para mim próprio. Tenho de ir, nem que caia o carmo e a trindade.
A minha bisavó Augusta era da religião Jeová, ou Testemunha de Jeová. Quando era puto, ela foi a minha catequese. Nunca fui baptizado nem frequentei a Igreja Católica, mas ela ensinou-me com a boa disposição e paciência que lhe eram intrínsecas, a história de Jesus Cristo e muitas outras histórias da bíblia. Apesar da minha renitência inicial, da minha gozação e brincadeira constantes, fui aprendendo algumas coisas com ela que fizeram de mim um apaixonado por história, história dos povos, das nações, da criação do planeta... E, curiosamente, fizeram de mim um agnóstico quase ateu, que sou. Só havia uma Testemunha de Jeová em toda a família, era ela. E tinha a força para manter as suas convicções intactas. Ao ponto de me levar a uma convenção Jeová em plena Mata das Caldas (no pavilhão da cidade)... que, confesso, foi uma seca descomunal.
Como viúva que era, conseguia levar a vida com um sorriso e sabia aligeirar as coisas sérias como poucos. Tinha uma tendência para gases que levava a outra tendência: punha a família toda a rir. Era pequenina, mas gostava de abraçar e tocar a cara das pessoas. Senti-las. Tomá-las como suas. Tenho saudades dela. Fez parte da minha infância e adolescência.
Adeus avó Augusta. Desculpa. Até um dia destes.
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Lembro-me de lhe ensinar a utilizar o telefone. "Modernices", dizia ela. Mas aprendeu. Lembro-me dos olhos pequenos e sorridentes e de como gostava de se aperaltar quando saia para algo especial. Lembro-me de dizer que havia lobos maus na rua, à noite, para evitar que eu fosse à procura dos meus pais, que me tinham deixado em casa da minha avó. Essa faceta (pregar sustos às crianças para não fugirem ou fazerem coisas que não deviam) era habitual ter-se no campo, de onde ela vinha, pelo que sempre lhe perdoei. Mais tarde dizia o mesmo e eu já não acreditava... e ela ria-se. Lembro-me de sempre a achar muita mais parecida com a minha tia Regina do que com a minha avó Graça. Lembro-me dela e isso é importante para mim. Faz-me pensar em mim mesmo, de onde vim e quem sou. Faz-me reavivar memórias que ainda estão em mim e que fizeram de mim quem sou, mesmo que isso não seja nada de especial.
É curioso como a minha "vó Augusta" está mais presente nas minhas memórias e no meu princípio de vida do que poderia pensar antes de começar a escrever este texto. Escrever liberta o pensamento das amarras do crescimento. E ainda bem.
Obrigado por tudo vó.