É no dia em que o meu corpo pede mais sono, pede mais descanso, em que a minha mente não raciocina de forma fluída, que me sinto mais vivo e lúcido. A típica noite em branco, de domingo para segunda, que já dura há anos e anos, deu lugar a um dia diferente do habitual.
Vi a grande cidade pelos meus primeiros olhos, os mesmos que a viram pelas primeiras vezes. Os mesmos dois olhos curiosos e receosos, que olhavam para tudo com espanto e descoberta. Que desconfiavam das muitas pessoas estranhas que andavam pela noite da cidade. Foi preciso a minha irmã ter comigo para o sentimento invadir-me novamente. Sinto que me revi, que senti como já não sentia há muito tempo. Senti-me mais vivo por isso. O receio e o espirito de descoberta sempre me trouxeram mais vida ao espirito. Talvez outra clarividência. Sinto mais medo de errar, mais medo ao passar pelos locais de sempre, pelas ruas de sempre.
Bastou um pequeno passeio à noite para reaviver sentimentos e olhares tão antigos que até doem. Já fui assim e parece que pude reavivar esse pedaço de mim adormecido. E isso é vida dentro de mim. Sinto-me outra vez mortal, e isso é viver... é poder arriscar.
Parece que foi na maior moca de sono dos últimos anos que obtive o momento de maior clarividência... Estou cheio de sono e meio zonzo (como andei parte do dia), será que estou a delirar? So be it.
Para mal dos meu pecados, o final da noite tinha mais um suplício totalmente anti-sono - sono, aquele que é mais desejado do que um trago de água depois de um banho prolongado no mar, ou da subida de uma montanha, ou mesmo de horas a caminhar no deserto. A bola rolava, mas o corpo não correspondia. Fugia mais rápido do que o habitual. A cabeça não levantava do chão e acabava por se perder, entre a concentração, a bola. Mais cansado, mas talvez menos ensonado. A viagem de volta voltou a ter aquele saborzinho de vida, espalhado por cada metro de asfalto e por cada acorde de viola e cada pedaço de vida mensagens antigas vindas das colunas. Parece o regresso às origens. E é nas origens que está o meu verdadeiro eu. É ali no campo. É ali naqueles sons rocos mas sentidos e que me dão que pensar. É ali naquelas ervas altas balançadas pelo vento, que parecem dançar ao som das palavras que estou eu. Mesmo que vá, metro a metro, pelo asfalto da cidade... a caminho de casa. A caminho do sono tão desejado, tão ansiado... todo o dia. A cabeça já não diz coisa com coisa, o corpo também anda em câmara lenta... vou-me deitar. Será que amanhã conseguirei ser o mesmo rapaz do campo disfarçado pela cidade? Só o tempo o dirá.
Post Scriptum: Pensamos sempre que os acidentes de automóvel acontecem aos outros. As doenças acontecem aos outros. Quando estamos todos num campo a correr atrás da bola e um se magoa a sério... dói ver a dor dele, mas não deixa de lhe doer só a ele. Lamentamos a dor dele, pegamos devagar na trouxa e rumamos tranquilamente para casa. Se tivesse acontecido a nós iriamos estar durante uma, duas, três, quatro, cinco ou quem sabe seis semanas a viver com as consequência de uma queda que resultou mal. E pode acontecer a nós. Está mesmo ali, à espera de poder acontecer. É uma questão de sorte ou azar. Pode ser uma questão de tempo. Será que deixo de arriscar e jogar por causa disso? Não. Mas lá que dá que pensar... dá.